Afrodite por Afrodite, um ensaio

Por Renato Kress

Vocês hoje estão submersos em Hermes, percebem? Querem consumir e consumir e consumir de maneira frenética e impulsiva ao invés de produzir, ou de reproduzir, e nem sequer percebem como traem suas naturezas! Quando consomem gozam e o gozo é o fim do tesão. O gozo acelerado do consumo é o fim da tensão entre você e o seu desejo e é aí que está o fim da vida. A vida de gozo em gozo vira letargia e banalização da tensão que é o verdadeiro tesão da vida.
 
Acho a maior insanidade essa ideia de controlar seus desejos, vocês têm uma verdadeira tara por controlar todas as taras. Na pretensão de controle dos seus instintos vocês se separam de si e acuam “o animal” – que vocês identificam como animal, como se vocês fossem algo muito diferente disso que julgam inferior. E é claro que ele, “o animal” se desespera e te despedaça por dentro!
 
Pense em convergência e divergência. Eu sou mais parecida com Zeus que com Hera. Vocês que tentam pasteurizar todas as deusas como se fossem a mesma coisa ou falassem apenas por um gênero, lidem com isso: Eu não vou te conter nem te limitar, Hera vai. Aí você me olha prenhe de fascínio e esquece quem eu sou. Não, eu não vou te limitar. Eu vou te trair, vou errar, violar e transgredir todos os teus acordos e certezas. Esse é o meu papel. E dessa traição você erguerá certezas e você vai se apaixonar por cada mentira que elas te contarem. Certezas são mentiras em fase de crescimento.
 
Vocês se apegam às certezas como quem está no tal do inferno, estirando as mãos para o tal paraíso. Nós éramos mais justos com vocês. Nossos Campos Elíseos estavam dentro do Hades. Hoje vocês afastam as coisas e se esgarçam até arrombarem suas almas. O paraíso de vocês é a expectativa de parada, de estabilidade e freio. E vocês sabem que foi em cada pouso e repouso que encontraram o inferno.
 
Eu sou desejo. Aquilo que é adorado existe para ser devorado. Eu sou o adubo para a terra dos meus instintos. Te parece estranho? Alguma vez você já saciou completamente a sua fome? E… ela voltou depois? Exigente, imediata, brusca, desesperada, te corroendo por dentro, tornando qualquer outra coisa invisível, sem sabor e sem vida diante da necessidade imediata da satisfação das vontades dela? Talvez eu seja a fome.

Eu não sou saciedade, eu sou inquieta. Eu demando como a vida demanda. Vocês acham que são constantes, não são. Sua mudança é constante e ela sempre tende à morte então eu sou a única forma, o caminho, a verdade e a vida para a sua parcela possível e sempre limitada de imortalidade. O grande desafio é a tensão que forma a vida. Átrio e ventrículo, direita e esquerda, contração e relaxamento, tesão e frouxidão. O desafio é romper e obedecer em igual medida, trair e respeitar. Esse é o único meio de manter o fluxo da vida. Por isso Hera me odeia, eu sou o antipoder dela, seu reverso, sua parceira de dança. Por isso Hera me pede favores, como quando pediu meu cinto para seduzir Zeus. A grande deusa é continente e vaso, ela dá forma e bordeja definindo limites, a honra, a lei, a ordem. Eu sou tudo o que há para além da borda, aquilo que transborda e inunda. E ela se expande para me conter, e eu transbordo para ser. 

Você que me lê já fez merda? Já errou e se viu diante da autoridade com seus olhos acusatórios ali parada na sua frente em silêncio e ao mesmo tempo gritando dentro da sua cabeça com aquela voz que você chama de consciência? Pois então, sou eu em presença de Hera. A gente não se dá, a gente se precisa. A transgressão e a traição são tão necessárias à evolução quanto o acolhimento, o bordejamento e o limite. O problema é que temos de ser fiéis às nossas naturezas. Eu e ela. E nisso está  a raiz do respeito que às vezes temos uma pela outra, nesse senso estranho e tão familiar de integridade e coerência que emanamos. As coisas reais existem nesse intervalo, nessas entrecoxas da tensão que ondula entre nós.

Se vocês pensarem um pouquinho só, prometo que vai ser dolorosamente libertador, eu entro traindo para inaugurar. Se não se espera que ocorra a subversão, a sedução e a entrega a outra nova verdade, é porque ainda se está muito apegado à verdade anterior e, queridos, para vocês todas as verdades passam. Como as ilusões de poder e controle que vocês depositam nelas também.

Qualquer um que te imponha algo contra a sua natureza estará te violando, te violentando. Quando Hera me coloca como objeto e me dá, como um bibelô bonitinho, para seu filho brincar, quando ela me joga nos braços de Hefesto como se eu fosse um prêmio de consolação por ele ser feio e manco, por ele ter sido arremessado Olimpo abaixo por não corresponder aos desejos idealizados do casal, ela me violenta. Porque eu ofereço perigo a ela. Ela tenta me castrar, me submeter. Na fantasia de controle dela eu estou sendo esmagada diante do poder do calcanhar dela na minha traquéia com aquele casamento. Mas eu nasci das águas, eu não revido – ou não revido assim, não na hora que se espera que eu revide – eu sou água e esperma, eu fluo, eu fecundo. 

Cada casal tem sua intimidade e se você quiser destruir os acordos íntimos basta enfiar a sua mãe no meio. Isso aí deuses e mortais têm em comum. Eu dançava com Hefesto. Sim, isso mesmo, eu e o deus manco dançávamos! É claro que ele sabia que não era meu preferido, é claro que nós sabíamos que uma das poucas chances que tínhamos de estar juntos era por essa intervenção, por esse mandamento divino da mamãe. Ela lá, desesperada para compensar seus erros e ausências tanto quanto para se mostrar acima de mim, se mostrar poderosa! É claro que Hefesto sabia que eu traía ele! Ele foi meu marido! Bastava olhar uma vez para mim para saber que eu posso ser tudo, menos traidora da minha própria natureza e ele, ele foi fofo e cúmplice enquanto pôde! Sim! Cúmplice! Ele saía pela manhã ser fiel a si mesmo, dar amor e tempo e energia e devoção ao que ele era, trabalho! Nisso ele me dava tempo, espaço e tranquilidade para ser fiel ao que eu sou: desejo! Se você pensa que isso é um casamento de aparências talvez esteja vendo pelo viés errado. Eu não tenho nada a explicar a ninguém e eu esperava mais dele, porque por um tempo acreditei que ele também não tinha. Então fomos felizes sim! À nossa maneira, claro.

Mas então entra Hélios. O fofoqueiro celestial chama Hefesto num canto e encurrala o coitadinho! Sim, Hélios! Quem contou a Deméter onde estava Perséfone, estragando a vida da menina lá no escuro quentinho com Hades? Quem saiu correndo para o Olimpo para contar a Zeus que os marinheiros de Ulisses não resistiram à provocação da fome e comeram os seus carneiros? Hélios! Maldito óbvio! Quase nada me irrita mais do que o óbvio!

Hélios correu a contar a Hefesto que eu e Ares brincávamos na ausência dele! Pelo amor de Zeus e Hera é óbvio que ele sabia! Mas agora não tardaria muito até que o resto do Olimpo soubesse! Se Hélios viu, todos saberiam! Aí a coisa se tornou uma corrida para o tortinho! Já imagino ele manco e torto quicando para a oficina a toda velocidade para fazer a tal rede e mostrar a todos que ele já sabia! É claro que ele já sabia, o Olimpo já sabia! Mas não era bonito, não era de bom tom que ficasse evidente! E lá foi a mãe fazer o filho sofrer de novo! Até esse dia eu poderia sempre estar ali para acolher quando necessário – porque isso é mais amor e casamento que a merda da fidelidade sexual, e todos sabemos disso! A partir daquele dia não. Fomos cada um para um lado, eu, ele e o irmão. A coisa toda desandando porque os homenzinhos não podem ter suas taras e seus acordos expostos, porque têm de brincar a vida inteira de manter as aparências. 

O traído sempre entra em luto. Isso é óbvio. Todos vocês já pensaram que Hefesto sofria e se metia em sua oficina, claro. Mas perceberam que Ares não se vingou do irmão que o prendeu, apontou e acusou? Perceberam que eu não me vinguei de Hélios e de Hera ou da exposição que Hefesto me fez passar? Eu fui a Chipre, sem Hefesto, sem Ares. Ares foi lá para as cidades dele guerrear e ser adorado. Cada um se retraiu à sua forma de luto. Cada um tem seu jeito de desapegar. 

Mas o amor é tão irritante que, com tempo, ele faz aquilo que é menos provável. Aprende e o que aprende ensina, perdoando. O poder é reacionário, não quer mudança, não quer novidade, reage com violência e arromba a criatividade e a vida. O amor é revolucionário, em último caso até aceita, acolhe, perdoa. Não vê Psiquê? Pois é. Quer acabar com a vida íntima de qualquer casal? Envolva a sogra.

A Coletividade Helênica de São Paulo está oferecendo o Curso de Mitologia – O Ciclo das Grandes Deusas, com o professor Renato Kress. São 8 encontros no total, com aproximadamente 3h de duração por encontro e material incluso. Apostila, contação da história, roda de conversa e gravação do encontro, que fica disponível por 30 dias. Cada encontro aborda uma Deusa: Hera, Hestia, Deméter, Afrodite, Tétis, Ártemis, Atená e Perséfone.

O curso teve inicio no dia 07/05/2021, mas ainda dá para você participar! Mais informações: (11) 99782-5300 ou cultural@helenica.com.br.

Próximos encontros: Tétis (11/06/21), Ártemis (18/06/2021), Atená (25/06/2021) e Perséfone (02/07/2021).

Renato Kress é carioca, antropólogo, cientista político, especialista em psicologia analítica pelo IJRJ e arteterapeuta em formação.

Criador e coordenador dos encontros Mito e Mente desde 2010!

@instituto_atena

Professor Renato Kress

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